sábado, 14 de março de 2015
CONHECENDO A HISTORIA DO SEU BAIRRO - HOJE, AS LUTAS POR TERRAS NO MENDANHA
O Mendanha é um dos poucos lugares bucólicos ainda existentes no Rio de Janeiro. Para muitos, essa região sempre foi dominada pela tranquilidade, já que agrícola e bem afastada dos núcleos urbanos. O que permite que haja uma verdadeira comunidade de pequenos lavradores ali vivendo.
Mas para que isso pudesse ocorrer hoje, foi necessária muita luta por parte desse pessoal.
Esta região era constituída pelas fazendas Sete Riachos, Guandu do Sena e Guandu-Sapê. Suas terras produziam hortaliças e verduras e, em menor escala, cana-de-açúcar, banana, laranja e aipim. A agricultura parecia ser a principal preocupação dos habitantes do lugar até o momento em que o “drama” vivido pelos “colonos” dessa região passou a mobilizar as atenções da imprensa e políticos cariocas a partir do início dos anos 50. As duas primeiras fazendas citadas tinham sido desapropriadas pela prefeitura mediante o decreto de nº 9.942 de 29 de outubro de 1949, com o fim de impedir o seu loteamento. Mas por “arte de berliques e berloques que não posso explicar, essas desapropriações foram tornadas, posteriormente, sem efeito”, lamentava na tribuna o vereador petebista Gonçalves Maia numa das sessões da Câmara Municipal em meados de 1951. Segundo G. Maia, 80 lavradores “que ali nasceram e, há cerca de 50 anos desbra[va]vam aquelas terras”, mandando para o Mercado Municipal 40 toneladas de frutas e legumes, estavam “agora, na iminência de serem despejados, pela ganância de companhias que querem retalhar aquelas terras em pequenos sítios para ‘grâ-finos’ do Distrito Federal fazerem seu week-end”. Os autores desse “atentado” seriam, segundo o tribuno carioca, Adroaldo Mesquita, ex-ministro da marinha e “uma criatura que devia medir as suas responsabilidades públicas e não lançar à miséria aquêles desbravadores do sertão carioca”; e a Cia. Imobiliária Nossa Senhora das Graças, da Congregação dos Marianos. Um ano depois, o que parecia difícil acabou acontecendo – a situação dos lavradores ganhava lances mais “dramáticos”.
No dia 30 de junho de 1952, o então ministro da Marinha Renato Guilhobell recebia em seu gabinete um telegrama do vereador petebista João Luiz de Carvalho dando conta de um “desrespeito à Constituição da República” praticado, segundo ele, pela Marinha. Tratava-se de um “atentado praticado contra centenas de lavradores na Fazenda Guandu do Sapê (...) pondo em perigo a vida de laboriosos homens do campo que tiveram ainda suas benfeitorias avariadas”. Os autores de tal crime teriam sido dois “choques” de fuzileiros navais. Ao fim do telegrama, o indignado vereador pedia que o ministro salvaguardasse os “direitos de modestos patrícios ameaçados de violência”. Uma semana depois, o jornal Imprensa Popular apresentava mais detalhes sobre a incursão da Marinha sobre a região. Segundo o jornal, 50 famílias “camponesas” estabelecidas “há mais de vinte anos” estavam sendo expulsas a canhões e metralhadoras pelo Ministério da Marinha”. A operação dos fuzileiros navais teria começado em 27 de junho, quando “fincaram bandeiras num morro, onde fica[va]m várias casas, e para lá apontaram os canhões, metralhadoras e fuzis”. Alguns lavradores, especialmente suas esposas, tentaram interromper a operação, mas “os gritos das crianças e mulheres não comoviam os atiradores, que continuavam impassíveis a disparar suas armas”. O resultado de tudo isso foi um sem número de roçados destruídos, casas avariadas e lavradores atormentados, “já que permanecia viva naqueles trabalhadores a visão do que ocorrera”. D. Noêmia Alves Ferreira, “espôsa de um colono”, contou: “- Estava deitada com meu filho de quatro meses. Quase morri de pavor. Fiquei como louca, com tanta explosão e tiro.”
Os lavradores diziam que o Ministério da Marinha pretendia instalar ali uma fábrica de armamentos. Ao invés de negociar, o órgão tentava expulsá-los através da intimidação. Ao que parece, os lavradores da Guandu-Sapé não estavam dispostos a questionar abertamente a legitimidade do domínio da Marinha sobre as terras. O que eles não aceitavam era a forma como a Marinha pretendia removê-los, com base na violência e sem nenhum tipo de indenização. Esta última era vista como um direito, já que diziam ser “arrendatários” do “antigo dono” – o coronel João Crisóstomo. Pouco mais de quatro meses depois, João Luiz de Carvalho ia à tribuna da Câmara Municipal reclamar das “autoridades competentes”, que nada fizeram depois do telegrama por ele enviado dando conta do “crime de lesa-pátria” da Marinha:
“Quando um brasileiro pretende trabalhar e ser útil à sua Pátria e procura melhorar o seu nível de vida e quer dar maior confôrto à sua família, vem o próprio Governo despeja-lo de suas propriedades, para, nos seus terrenos, construir uma fábrica de cartuchos.”
No mesmo ano, bem perto dali, os lavradores estabelecidos nas fazendas Sete Riachos e Guandú do Sena, comemoravam a decisão da Câmara Municipal em desapropriar a área abrangida pelas duas fazendas. A Câmara, apoiada pelo então prefeito João Carlos Vital, tinha decido também destinar uma verba de 30 milhões de cruzeiros para a realização da desapropriação. Porém, nos últimos meses do ano seguinte encontramos os lavradores protestando contra o não cumprimento da lei pelo prefeito Dulcídio Cardoso, sucessor de Vital. Dulcídio estaria “prendendo a verba”, fato que para o jornal Imprensa Popular, evidenciaria o seu conluio com uma cia. imobiliária, neste caso, a Nossa Senhora das Graças.
Dois dias depois, o mesmo jornal denunciava que parte da renda estava sendo utilizada para compra de jaulas de leões e girafas para o Jardim Zoológico.
Desde então, sempre que tinham oportunidade, os lavradores expunham a história da ocupação daquelas terras. Através dela, os lavradores tentavam mostrar que sua posse além de muito antiga, tinha se dado de forma mansa e pacífica, fato que só foi interrompido com a construção das primeiras estradas de rodagem e a consequente valorização imobiliária da região, o que teria despertado a “cobiça” de pretensos proprietários, que sempre agiriam com base na violência. Outra estratégia usada era a caracterização da área como terra devoluta. Assim como em outras áreas, os lavradores também destacavam o fim social de sua produção em favor da população da cidade do Rio de Janeiro: só do Guandu do Sena, saíam 10 toneladas de gêneros toda segunda, quarta e sexta para o mercado de Madureira. Assim, os lavradores procuravam argumentar que as ações dos grileiros eram prejudiciais não só aos lavradores como a toda população carioca. Vejamos o depoimento de um desses lavradores, que era o caso de Cirilo Ribeiro, “lá há 58 anos”, preocupado com a situação pela qual estava passando depois que “beneficiou em dezenas de contos as terras onde nasceu e cresceu toda a sua família”: “Desde 1929, no governo de Washington Luiz, apareceu por aqui a ambição de terra. De lá para cá nunca se teve mais sossego. Quando cheguei aqui, quem queria, plantava.” Antes “só havia capoeira”, sendo portanto terras da União. Depois de muito tempo apareceram “pessoas que cercaram as terras dizendo-se suas proprietárias”. Alguns fizeram um leilão, arrematado por 11 contos e 500 por José Garcia Ferreira; dele herdou as terras Marcos Garcia Pereira, que passou a cobrar aluguel “logo que umas estradas começaram a passar pelas proximidades”. Em 1947 “apareceram os Padres e a Cia. que todo dia avisavam que deveriam abandonar as terras”.
E aquilo que os lavradores mais temiam era oficializado em 22 de janeiro de 1954 no Diário Oficial: o prefeito revogava a desapropriação das fazendas Sete Riachos e Guandú do Sena. Dois dias depois, o jornal Radical (muito ligado ao PTB) publicava o agradecimento da agora Cia. Imobiliária Jardim Nossa Senhora das Graças pelo ato do prefeito. Domingos Otavio Jacobina Lacombe, o autor da mensagem, também agradecia ao senador Apolônio Sales, ao coronel Saturnino Lange e demais “acionistas militares”.
Além da Cia. Jardim Nossa Senhora das Graças, outro pretenso proprietário a requerer o domínio sobre as terras era Antônio Vaz Cavalcanti. Na verdade a área por ele requerida era parte da Sete Riachos. Zé Mota, lavrador ali estabelecido “há 16 anos” dizia que assim como ele, “os outros” também sofriam com as “ameaças de grilo” por parte de Cavalcanti, que teria se interessado por aquelas terras a partir de 1950, no momento em que “as estradas chegaram”. Segundo Zé Mota, “tudo ali era terra da União” desbravada por ele, só depois começaram a aparecer as “escrituras”. E com elas, ações truculentas de Cavalcanti com a ajuda do seu “pau-mandado” Lourival Silvestre dos Santos. Outro lavrador, Otacílio Ribeiro dos Santos, que mesmo “sem nenhuma instrução”, dizia saber de cor o parágrafo 3º do artigo 156 da Constituição (sobre o direito do Usucapião), “de tanto lidar com os advogados”, dizia ter sido “diversas vezes ameaçado de ter sua casa incendiada”. “Ameaças de despejo, incêndio e filhas violentadas”, teria narrado o lavrador Manuel Charles aos presentes numa assembleia realizada na sede da Associação de Lavradores do Sertão Carioca.
Leonardo Soares dos Santos
Historiador e professor da UFF
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